Gatilhos mentais não existem

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Ofamoso termo “Gatilhos Mentais” ficou tão impregnado no neuromarketing que afirmar que não existe, não somente é arriscado, como também pode ser considerado uma heresia. Contudo, faz parte da ciência revisar e validar ideias, hipóteses e teorias, principalmente quando elas soam como algo milagroso ou pseudociência.

Uma postagem com uma explicação mais resumida nas redes sociais do Aprenda Neuromarketing jogou gasolina na fogueira: muita gente discordou e insistiu que, não somente eles existem, como também trazem grandes resultados! Claramente um meme que contaminou de forma muito eficiente o cérebro dos profissionais da área.

Tudo isso tornou necessária uma investigação detalhada e profunda do meme “gatilhos mentais”, que se tornou parte essencial do Marketing Digital (pelo menos no Brasil) e pegou carona no neuromarketing como uma de suas grandes “descobertas” para aumentar vendas.

Em busca da origem do termo

Enquanto escrevia meu livro “Profundamente: neuromarketing e comportamento de consumo” precisei me debruçar em mais de 250 referências, entre livros e artigos científicos, buscando também alguma pesquisa da neurociência ou da psicologia cognitiva que desvendasse a origem dos famosos “gatilhos mentais”. Sem sucesso…

Eis que me deparo com uma postagem da Karoline Torres no LinkedIn, ex-aluna do curso presencial de neuromarketing e copywriter, com um insight da possível origem do termo (no contexto do marketing). Muita coincidência! Transcrevo abaixo sua postagem na íntegra:

“Estou desde ontem me perguntando como raios transformaram os ‘atalhos mentais’ de Cialdini em ‘gatilhos mentais’. Na ver dade, ainda estou meio impressionada em como livro dele ‘Influence: science and practice’/’Influence: the psychology of persuasion’ foi traduzido para ‘Armas da persuasão. Como influenciar e não se deixar influenciar’. O Cialdini é bem acadêmico, esse livro dele é usado como bibliografia em mestrado aqui nos EUA. Aí a galera vai e desvirtua os conceitos para tornar atrativo para o mundo startupeiro. hahahaha. Mas só para deixar claro, o Robert Cialdini não fala em gatilhos (‘triggers’ em inglês), ele fala em atalhos (‘shortcuts’ em inglês). hashtagpaz”

Obviamente na mesma hora entrei em contato para saber mais. Conversamos bastante e o insight da Karoline foi crucial para desvendar a origem apócrifa do termo.

Jeff Walker, o criador da “Fórmula de Lançamento” original, é o principal suspeito. Possivelmente baseando-se em Robert Cialdini, Walker disseminou o termo “gatilhos mentais” mundo afora como parte de seu produto Launch Formula (e no Brasil através do franqueado Erico Rocha).

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Segundo a pesquisa feita por Karoline, o termo “atalhos mentais” aparece 14 vezes no livro As armas da persuasão (e zero vezes “gatilhos mentais”), onde Cialdini, na tradução em português, afirma que:

“Recentemente os psicólogos descobriram uma série de atalhos mentais que empregamos em nossos julgamentos do dia a dia (Kahneman, Slovic e Tversky, 1982; Todd e Gigerenzer, 2007). Esses atalhos operam quase da mesma forma que a regra ‘caro é igual a bom’, permitindo um pensamento simplificado que funciona bem a maior parte do tempo, mas nos deixa sujeitos a erros custosos ocasionais. Especialmente pertinentes a este livro são os atalhos que nos indicam quando devemos acreditar no que nos dizem ou quando devemos fazer o que nos pedem.”

O mesmo trecho na versão original em inglês:

“Psychologists have recently uncovered a number of mental shortcuts that we employ in making our everyday judgments (Kahneman, Slovic, & Tversky, 1982; Todd & Gigerenzer, 2007). Termed judgmental heuristics, these shortcuts operate in much the same fashion as the expensive = good rule, allowing for simplified thinking that works well most of the time but leaves us open to occasional, costly mistakes.”

Um seguidor do @aprendaneuromarketing no Instagram sugeriu outra possível origem do termo: o livro Triggers: 30 Sales Tools You Can Use to Control the Mind of Your Prospect to Motivate, Influence, and Persuade de Joseph Sugarman.

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Publicado em 1999, o livro vai direto ao ponto e, sem explicar em detalhes como funcionam, lista categorias de “gatilhos mentais” como forma de tornar uma mensagem mais persuasiva. O autor alega ter categorizado tais gatilhos baseando-se em sua experiência profissional como copywriter.

I uncovered many of these triggers as a result of my ability to sell a product or service through the power of my words. In short, I was a copywriter who wrote mail order ads for more than 30 years. […] In Triggers I take you through each psychological trigger, explaining its power from my copywriting experience.

Apesar de fornecer poucas referências bibliográficas, conta com a indicação da obra de Cialdini.

Os gatilhos na psicologia clínica

O termo “gatilho mental” é frequentemente utilizado na área da saúde. Na psicologia, faz parte do contexto dos transtornos mentais. Ou seja, se alguém possui algum trauma de infância com cachorros, por exemplo, ao se deparar com um deles o cérebro “dispara” um gatilho que trará respostas associadas como uma crise de pânico. Em um estudo de 2006, cientistas utilizaram fMRI em busca de gatilhos mentais que possam disparar a asma, por exemplo.

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“[…] para isso é necessário que seja realizada uma avaliação do paciente para deixar claro aspectos como: os eventos (ou memórias de eventos, fluxo cognitivo) que servem como gatilhos para a resposta de ansiedade; avaliar os pensamentos automáticos, erros cognitivos e esquemas envolvidos na reação exagerada; respostas emocionais e fisiológicas e os comportamentos habituais, como sintomas de pânico ou evitação.”

(TRANSTORNO DO PÂNICO: CONTEXTUALIZAÇÃO E POSSÍVEIS TRATAMENTOS. Amanda Cherini Ferraz, Daiane Alves de Moura, Lara Kalkmann Goulart, Vanessa Pederiva)

Os gatilhos no Marketing

Segundo o blog KickPages (empresa de Erico Rocha), os “gatilhos mentais”, dentro do contexto do marketing, são:

“[…] armas psicológicas utilizadas pelo marketing para acender a necessidade de ação em quem recebe a mensagem. É, como o nome indica, algo que impacta a mente do receptor de tal forma que desperta a sua reação.”

Muito além de uma distorção do termo “atalhos mentais” proposto por Cialdini, há uma diferença conceitual entre ambos. Enquanto o primeiro é vendido como uma técnica quase mágica para persuadir e “disparar” uma atitude de conversão (geralmente vendas), ou seja o estímulo confundido com a resposta comportamental, Cialdini é mais cauteloso propondo os “atalhos mentais” como estímulos que facilitam o processo de decisão, economizando assim energia do cérebro.

Os “gatilhos mentais” são vendidos como uma arma de persuasão psicológica bastante eficiente, considerando o funcionamento do cérebro de uma forma simplória. Assim como um cavalo com os olhos cobertos sente a necessidade de andar (resposta) ao receber uma chicotada (estímulo), um consumidor sentiria a necessidade de adquirir um produto ou serviço ao se deparar com um dos tais gatilhos.

Por que gatilhos mentais não existem

Cientificamente falando, no contexto da neurociência do consumo, não existem “gatilhos mentais” como motivadores de consumo. Não há uma origem oficial e um embasamento científico que corrobore sua existência e eficácia. O mais perto disso são os “atalhos mentais” descritos por Cialdini.

No contexto do marketing e da comunicação, o termo “gatilhos mentais” aparentemente surgiu nos produtos Fórmula de Lançamento e Launch Formula, criado com um nome e conceito mais vendável e propagado de forma exagerada como uma arma, utilizada dentro de um contexto específico.

Portanto, seria mais prudente utilizar o termo “atalhos mentais” sem o exagero vendido por palestrantes e cursos de marketing digital. Há sim certas frases e palavras que, dentro de um contexto, podem contribuir em um processo de persuasão mas não aumentar vendas.

Assim, não é arriscado dizer que os “atalhos mentais” seriam parte do copywriting para facilitar um processo de tomada de decisão, obviamente dentro de um contexto já trabalhado para isso. Uma técnica de marketing que não possui o lastro da neurociência.

Nosso conhecimento sobre o cérebro humano, apesar de ter avançado incrivelmente nas últimas décadas, ainda está muito longe de propor uma fórmula ou técnica que possa motivar tão facilmente uma pessoa a adquirir um produto ou serviço através de manipulação psicológica. Até agora não há um estudo neurocientífico utilizando neurométricas e biométricas que comprove a existência dos “gatilhos mentais” assim como são vendidos nas palestras e cursos.

Um estudo recente, ainda em fase inicial, realizado por cientistas do Japan’s ATR Computational Neuroscience Laboratories e da Universidade de Kyoto busca decifrar gatilhos mentais através de pensamentos complexos, onde um algoritmo com inteligência artificial seria capaz de “ler” pensamentos e criar imagens a partir deles.

A tecnologia, segundo os pesquisadores, é capaz de entender eventos complexos, expressos como sentenças, e características semânticas, como pessoas, lugares e ações, para prever que tipos de pensamentos estão sendo contemplados. Depois de acessar os gatilhos mentais para 239 sentenças, o programa foi capaz de prever a 240ª frase com 87% de precisão.

Gatilhos mentais existem? Ou é apenas uma metáfora do marketing?

Conceitos simplórios como “gatilhos mentais” ou “cérebro reptiliano” devem ser desafiados ao questionamento, e se forem capazes, sobreviver ao rigor da ciência. Portanto, se considerarmos os “gatilhos mentais” como uma teoria ou hipótese, não somente é carente de autor mas também de método científico.

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